terça-feira, 8 de novembro de 2016

O FOGO MORTO

Primeira parte: “O mestre José Amaro”
Seleiro renomado da região, Mestre José Amaro vive nas terras pertencentes ao Seu Lula. A dedicação do homem ao ofício consome a saúde, conferindo-lhe um aspecto doentio. Mora inicialmente com a filha Marta, uma solteirona que acaba enlouquecendo, e com a mulher, Sinhá.
José Amaro reside na beira da estrada, localização que favorece o contato com vários personagens que passam pelo caminho. Entre as principais figuras com as quais desenvolve suas conversas estão o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, de quem se apieda pelo modo como é tratado pelo povo da região; o cego Torquato e Alípio, mensageiros do Capitão Antônio Silvino, cangaceiro temido da região. O mestre admira e respeita o cangaceiro, por considerá-lo o vingador dos pobres e explorados.
Em certo momento, Marta tem um forte ataque de convulsão nervosa e José Amaro a espanca no intuito de curá-la. Em virtude de seu semblante doentio e da insônia, que o leva a vagar pelas madrugadas nas ermas estradas da região, José Amaro é amaldiçoado pelo povo, que o acusa de ser um lobisomem. Homem orgulhoso, que sempre se gabava de trabalhar apenas para quem lhe aprouvesse, o mestre se indispõe com o dono da terra em que vivia, de onde acaba sendo expulso.
A tragédia do personagem se completa com a internação da filha, que enlouquece, e com a fuga da mulher, que teme sua figura doentia e vai aos poucos acreditando nas histórias do povo, até enxergar no marido a figura maldita do lobisomem.
Seu fim trágico só será revelado na terceira parte do livro: entregue à própria sorte, José Amaro é preso e humilhado pela tropa do Tenente Maurício, acusado de colaborar com o Capitão Antônio Silvino. Perdido irremediavelmente o orgulho, único bem que possuía, o mestre se suicida.

Segunda parte: “O Engenho do Seu Lula”

             Para contar a história do personagem Luís César de Holanda Chacon (Seu Lula), o narrador promove um recuo temporal rumo à época da construção do Engenho de Santa Fé. O fundador do engenho fora o capitão Tomás Cabral de Melo, que chegou à região, um sítio próximo ao engenho Santa Rosa, e criou um dos maiores engenhos do local, conquistando o respeito e a admiração de todos.
              Homem sério e trabalhador, o capitão trouxera para a região gado de primeira ordem, escravos e a família. Construído seu imenso patrimônio, faltava a ele uma única realização: casar a filha – que tocava piano e havia estudado no Recife – com um homem digno de sua educação. Rejeitando todos os pretendentes da região, por não terem os requisitos necessários, o capitão começa a se preocupar com a idade da filha e com sua condição de solteira.
É quando chega de Pernambuco o filho de Antônio Chacon, homem de coragem e muito admirado pelo capitão. O nome do rapaz é Luís César de Holanda Chacon. Fino e estudado, é considerado pelo capitão Tomás um ótimo partido para a filha e para suas ambições.
Depois de casado, o capitão percebe que o genro não se interessa pelo trabalho do engenho e passa a considerá-lo um leseira (pessoa tola ou preguiçosa) para os negócios. Após a morte do capitão, essas suspeitas se confirmam. Seu Lula, como passou a ser chamado, mostra-se um senhor de engenho autoritário, que impõe severos castigos aos escravos e lidera sua família e o engenho sem o talento nem o trabalho do capitão Tomás. Dessa forma, o engenho entra em decadência e, após a abolição da escravatura, os escravos debandam e o engenho deixa de produzir açúcar (torna-se “fogo morto”).
Comandando tudo de forma autoritária, Seu Lula proíbe sua filha Neném de namorar um moço de origem humilde e a moça acaba virando motivo de chacota na cidade. Após um ataque epilético, Seu Lula passa a se entregar à religião sob influência do negro Floripes. Por fim, acaba gastando todo o dinheiro que havia recebido de seu sogro como herança. Esta parte do livro se encerra com a famosa frase “Acabara-se o Santa Fé”.

Terceira parte: “O Capitão Vitorino”

           Capitão Vitorino é uma personagem que perambula pelas estradas, como um cavaleiro errante, ostentando um poder e uma dignidade que está longe de possuir, sendo uma paródia de Dom Quixote de La Mancha. O capitão vive, assim como Mestre José Amaro e Seu Lula, em uma realidade muito diferente da que tenta aparentar.
Certo dia, o capitão Antônio Silvino invade o engenho Santa Fé após saquear a cidade do Pilar. Ao tentar defender o engenho, Capitão Vitorino é agredido. Porém, ele é salvo com a intervenção de José Paulino. Com a chegada da polícia, todos são presos. Após ser liberado, Vitorino pensa em seguir carreira política na região.

Personagens
Mestre José Amaro: é branco e sente-se orgulhoso por isso. É explorado por seu patrão, mas sabe que não tem outra alternativa. Trabalhador livre, tem coragem e apoio do cangaço.
Seu Lula (Lúis César de Holanda Chacon): preguiçoso e autoritário, acaba perdendo toda a herança que recebeu e arruinando o Engenho Santa Fé. Após perder tudo, refugia-se na religião.
Capitão Vitorino Carneiro da Cunha (Papa-Rabo): é o defensor dos mais pobres e dos oprimidos. Embora plebeu, por ter parentesco com o Coronel José Paulino, diz-se capitão.

Coronel José Paulino: poderoso senhor de engenho.
Sinhá e Marta: respectivamente mulher e filha do Mestre José Amaro. 
Amélia: esposa do coronel Lula. 
Adriana: esposa do Capitão Vitorino. 
Capitão Antônio Silvino: chefe dos jagunços que atemorizam os senhores de engenho e políticos da região, lembra a figura do lendário Lampião. 
Tenente Maurício: chefe das tropas do governo, é antagonista do Capitão Antônio Silvino.

Sobre José Lins do Rego

José Lins do Rego nasceu no engenho Corredor, em Pilar (Paraíba), no dia 3 de junho de 1901. Foi criado no engenho de seu avô materno, uma vez que seu pai era muito ausente e ele era órfão de mãe. Formou-se em 1923 na Faculdade de Direito do Recife, Pernambuco. Durante sua época de estudante começou a escrever contos e artigos com temática política, vindo a manter amizade com diversos escritores e intelectuais importantes da época. Dentre eles, destaca-se o sociólogo e escritor Gilberto Freyre, uma de suas maiores influências.
Casa-se em 1924 com Philomena Massa, com quem terá três filhas. No ano seguinte, torna-se promotor público em Minas Gerais, mas transfere-se em 1926 para Maceió (Alagoas). Em Maceió, José Lins do Rego irá conviver com o meio literário formado por Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima e outros, vindo a formar sua consciência regionalista. Sua obra de estreia, "Menino de Engenh"o, foi publicada em 1932 e recebeu o prêmio da Fundação Graça Aranha.
Em 1935, muda-se para o Rio de Janeiro, onde passa o restante de sua vida. Em 15 de setembro de 1955 é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Dois anos depois, em 12 de setembro de 1957, falece no Rio de Janeiro.
Suas principais obras são: "Menino de Engenho" (1932), "Doidinho" (1933), "Bangüê" (1934), "Usina" (1936), "Riacho Doce" (1939) e "Fogo Morto" (1943).


Fogo Morto – José Lins do Rego

Fogo morto (1943) é considerado a obra-prima de Lins do Rego e o último romance da fase regional neorrealista, que no Brasil teve início nos anos 1930. A obra apresenta três partes, cada uma focada em um dos três protagonistas

1ª parte: O mestre José Amaro

Apesar de não pertencer ao “ciclo da cana-de–açúcar” de José Lins do Rego, encerrado com Usina, Fogo morto retoma a temática canavieira, alguns personagens já conhecidos e o engenho Santa Rosa.
Na primeira parte, apresenta-se Mestre Amaro, um seleiro (artesão que faz selas para cavalos), e explica-se a fama de lobisomem atribuída a ele, em razão de sua personalidade amarga e frustrada e de suas andanças à noite.
Além de estar sendo pressionado pelo dono do engenho Santa Fé a deixar suas terras, Amaro vivia amargurado com a sua situação familiar, pois não se entendia muito bem com a filha e a esposa. Gostava de andar à noite porque o silêncio e a solidão lhe traziam um pouco de paz e alívio. Mas o povo começava a inventar que o seleiro era uma estranha criatura noturna que saía em busca de sangue.
Fogo Morto

Cena do filme Fogo morto (1926).


Viu a luz da casa das velhas do seu Lucindo como um farol vermelho na luz branca da lua. Aproximou-se mais e ouviu choro de gente. O que seria aquilo? Pensou em entrar no atalho que dava para a casa. E estava pensando em procurar saber o que podia ser aquele choro, quando um canto de reza subiu ao ar. Era quarto de defunto. Entrou no atalho e se foi chegando para a casa que se escondia atrás de um juazeiro enorme. Só podia haver muita gente dentro da casa para dar aquele volume enorme de canto de morte. E quando ele se chegou na janela e botou a cabeça para olhar o povo rezando, um grito estourou como uma bomba.
– É ele, é o lobisomem. Correu gente, mulheres gritaram.
– É o mestre José Amaro, gente – falava um homem que estava na porta.
– É o mestre José Amaro, povo besta.
Pararam de rezar. Estendida na esteira estava a velha Lucinda amortalhada. Olhavam para ele as mulheres apavoradas. Não pôde ficar por mais tempo ali. O homem que acompanhara as mulheres veio falar com o mestre.
– Estão com medo do senhor.
– De mim?
– É verdade. Este povo é besta mesmo. (…)
Agora não estava consertando os arreios de um velho doido, não estava fazendo sela para um camumbembe qualquer. Trabalhava para o grupo de Antônio Silvino. Cortava solas para cabras que já sabiam morrer no rifle, para gente que tinha sangue de macho. Não era um pobre seleiro de beira de estrada, era mais um oficial de bagaceira de engenho. (…)
Que fossem para o inferno os grandes da terra. Para ele só havia uma grandeza no mundo, era a grandeza do homem que não temia o governo, do homem que enfrentava quatro estados, que dava dor de cabeça nos chefes de polícia, que matava soldados, que furava cercos, que tinha poder para adivinhar os perigos.
José Amaro tinha grande afinidade com o estilo desregrado de vida de Antônio Silvino, líder do cangaço, considerando-o como um herói, símbolo da força e da coragem – qualidades que José Amaro não possuía.

2ª parte: O engenho de seu Lula

A segunda parte faz uma regressão temporal e apresenta ao leitor a figura do capitão Tomás Cabral de Melo, o fundador do engenho Santa Fé. Após sua morte, é o marido da filha (dona Amélia), seu Lula, quem passa a conduzir o engenho.
A carruagem atravessava as várzeas do Santa Fé. Tudo estava coberto de mato. Só um partido de cana, umas três cinqüentas, com o verde-escuro da cana bem criada. No mais era a mataria, o tabocal, o mata-pasto, o melão-de–são-caetano se enrascando pelas estacas da beira da estrada. Também não havia ninguém que quisesse plantar as terras do Santa Fé. O coronel Lula não queria lavrador que lhe viesse com exigências descabidas. Ali viera, logo depois de 88, um sujeito de Itambé, e fizera dum partido de cana para mais de duzentos pães. Seu Lula implicara com o lavrador, e no final da safra o homem deixara tudo e ganhara o mundo. A fama da mesquinhez de seu Lula correra pelos quatro cantos. E por isso não aparecia quem lhe quisesse plantar a várzea.
A falta de habilidade de seu Lula para conduzir o engenho é uma das causas da decadência do Santa Fé. Ele tinha a fama de tratar com extrema violência os escravos, que acabam por debandar após a abolição.
Sem se entender com lavradores, seu Lula vai afundando cada vez mais o engenho. Após um ataque epilético torna-se um religioso fervoroso. Esta parte da narrativa termina com uma triste constatação: “Acabara-se o Santa Fé”.

3ª parte: O capitão Vitorino

O capitão Vitorino, compadre e amigo de Mestre Amaro, é o personagem central da terceira parte. Luta por seus ideais, sendo sonhador em demasia. Deseja ser um herói, mas para a maior parte da população do Pilar é tido como um louco ou um bobo. A figura do “Papa Rabo”, como era conhecido constitui uma mescla de dom Quixote e Sancho Pança, de Cervantes. Após um incidente com o tenente, o capitão tem o reconhecimento que considera ser digno dele.
E quando o trem saiu com o velho Vitorino, a estação estava cheia de gente que viera ver a partida do prisioneiro. Todos se espantavam da coragem, do jeitão atrevido do velho. Era homem que ninguém dava nada por ele e não tinha medo de coisa nenhuma. A velha Adriana voltou para casa mais tranqüila. Vira o marido com os parentes ao seu lado. Mas o tenente Maurício ficara na vila como um rei. Delegado e prefeito não valiam nada para ele. (…)
Saíra um artigo no Norte com queixa contra o tenente. O capitão Vitorino Carneiro da Cunha era apontado como um cidadão pacato que levara uma surra da força volante. No outro dia apareceu uma retificação. Era Vitorino que procurara o redator para contar tudo como se passara. Não levara surra nenhuma. Em luta com o tenente, que procurava humilhá-lo, fora ferido. Reagira à prisão. Toda esta perseguição só podia atribuir às suas atitudes políticas. Estava contra o governo. Era correligionário da candidatura de Rego Barros. Pois ficasse o governo certo de que não havia força humana que o arredasse do seu caminho. Ele e todo o eleitorado iriam às urnas para salvar a Paraíba dos oligarcas. A resposta de Vitorino foi lida no Pilar, como mais uma do velho. Mas pelo estado correu a notícia da violência. Os jornais de Recife falaram no caso. Um homem de bem, um proprietário na Paraíba fora agredido pela força pública porque se mantinha contra a situação. Era tudo o que Vitorino queria na vida. Voltaria assim da capital como um chefe. Agora falava por cima dos ombros. O coronel Rego Barros passara-lhe um telegrama do Rio com palavras de aplausos à sua atitude corajosa. Seria recompensado com a vitória da causa. Pelos seus cálculos o município era todo seu.
Quando o mestre José Amaro suicida-se com uma faca de solar, é o capitão Vitorino quem cuida do defunto. Também é ele quem vê, ao final da obra, o engenho Santa Rosa soltando fumaça e a chaminé do Santa Fé com flores cobrindo a boca suja, O engenho estava de “fogo morto”, ou seja, não produzia mais.

Decadência e esperança

Fogo Morto representa a decadência de uma organização econômica e social: o engenho. Através dos três personagens principais, focalizados em cada uma das partes do romance, José Lins do Rego nos apresenta diferentes reações às mudanças, que levam a diferentes destinos.
Mestre Amaro e o coronel Lula de Holanda resistem às mudanças e por isso não se encaixam nesse mundo em transformação. O primeiro, um artesão, representa o trabalho manual que deixará de existir na sociedade industrial que começa a chegar com as usinas. O segundo representa uma aristocracia rural inconformada pela perda de seu poder econômico e político, antes absolutos. Apenas o capitão Vitorino parece reagir às mudanças de forma positiva luta para modificar velhas estruturas porque quer construir uma sociedade melhor, mais justa. Apesar de sua ingenuidade, insere no desfecho do romance um toque de esperança.


Análise da obra
Fogo Morto (1943) foi o décimo romance e é a obra-prima de José Lins do Rego. Romance de feição realista, revela o processo de mudanças sociais passados no Nordeste brasileiro, num período desde o Segundo Reinado até as primeiras décadas do século XX.
Na verdade, apesar de sua estrutura literária sólida, Fogo Morto é um documento sociológico, que retrata o Nordeste e a oligarquia composta pelos senhores de engenho, ameaçada com a chegada do capital proveniente da industrialização. São engenhos de “fogo morto”, onde decai o patriarcalismo com suas tragédias humanas. O romance é a expressão de uma cultura, pois retrata o mundo da casa grande e o mundo da senzala com as conseqüências sociais do relacionamento de um com o outro.

José Lins do Rego manifesta a tendência regionalista de nossa literatura e de nossa ficção entre 1930 e 1945, configurando a situação política, econômica e social do Brasil. As oligarquias açucareiras são dominadas pelas oligarquias cafeeiras, revelando um sistema político apoiado em acordos de interesses, mantidos por Estados que se sustentam nos coronéis dos municípios.
Desponta assim um regionalismo novo, diferente do regionalismo romântico: o exotismo e o pitoresco não interessam mais. Surge agora um Brasil doente, com fome, escondido que estava sob uma capa de “civilizado”. Surgem os problemas mais graves: o baixo nível de vida, o banditismo, a superstição, uma população dominada por uma classe minoritária. Esse tipo de regionalismo crítico aparecerá também nas obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. Convém frisar que José Lins do Rego poderia ser colocado sob a bandeira do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre.
O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. Gira em torno de três personagens empolgantes, que são as três mais fortes personagens da sua criação ficcional. São elas: o mestre José Amaro, o artesão, o major Luís César de Holanda Chacon, o senhor de engenho decadente, e o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, que é, sem dúvida, a maior personagem do livro e de todos os romances de José Lins do Rego.
Linguagem
Quando José Lins do Rego publicou Fogo Morto, já não se discutia mais a necessidade de renovar a linguagem literária brasileira na ficção. O compromisso regionalista de José Lins do Rego é sobretudo de âmbito popular, e é exatamente a linguagem popular da Paraíba, isolada de influências externas, conservada em sua autenticidade regional, que o escritor utiliza. É a linguagem dos poetas populares, distribuída, agora, com um ritmo narrativo mais tradicional.
Quando Mário de Andrade, em Macunaíma, procurou usar uma língua comum a todas as regiões do Brasil, ele estava consciente de estar realizando um experimento e não de estar criando uma linguagem. Mário apenas mostrou o que poderia e deveria ser a experiência coletiva de um povo.
José Lins traz para a literatura a estilização da linguagem regional com absoluta autenticidade espontânea e pura, colhida na própria fonte, sem influência erudita.
Assim, podemos observar essa diretriz no romance Fogo Morto: o ritmo fraseológico remontando à mais antiga tradição dos contadores de histórias, que foram os únicos artistas populares do Nordeste. Ora, os romances do ciclo da cana-de-açúcar são, uns mais, outros menos, memorialistas. Essas memórias enraízam-se também na linguagem dos cantadores nordestinos, nessa literatura oral de que o romance de José Lins contém traços marcantes.
Personagens
Cada uma das personagens principais representa, na verdade, uma classe social da população nordestina. As três personagens centrais estão envolvidas no cenário de miséria, doenças, e por uma politicagem e prepotência policial que defendem as minorias fortes e, como saída, o cangaço.
José Amaro - Trabalhador branco livre do Nordeste. Revela forte orgulho por ser branco e alta consciência de seu humano. Sabe que é explorado e não quer aceitar; porém não tem alternativa, salvo sua coragem e o apoio ao cangaço.
Coronel Lula de Holanda - Figura como representante da aristocracia arruinada dos engenhos. Possuí o orgulho despótico de um senhor feudal, mas perde o poder econômico. Refugia-se na religião, no amor ao passado, sem deixar de lado suas vaidades. Humilhado pela decadência e sofrendo as  pressões do cangaço, isola-se.
Vitorino Carneiro da Cunha - Representa o eterno opositor, corajoso, que aceita todas as lutas, um idealista em defesa dos mais fracos. Plebeu e ao mesmo tempo aristocrata pelo parentesco com o coronel José Paulino, outorga-se o título de capitão.
Freqüentemente fazem-se comparações entre Vitorino e a figura de D. Quixote. De fato, ele tem de D. Quixote o idealismo, a luta pelos fracos e pela justiça (verdadeiro moinho de vento no Nordeste). De Sancho Pança, Vitorino tem sua figura exterior: gordo, alegre, espirituoso, sempre montado em seu burro velho, aceitando pacificamente as perseguições dos moleques, que o chamam de “Papa-Rabo”. Assim, Vitorino representaria um D. Quixote sertanejo, uma das maiores criações de José Lins do Rego.
Tenente Maurício - Desempenha o papel do opressor, comandando uma tropa de homens mais temíveis que os próprios cangaceiros.
Negro Passarinho - Escravo recém-libertado, tem o vício da bebida.
Coronel José Paulino - Senhor de engenho, poderoso e forte, oportunista politicamente.
O Cego Torquato - Elemento de ligação do cangaceiro Antônio Silvino.
Antônio Silvino - Cangaceiro, apoiado por mestre José Amaro.
Cabra Alípio - Extremamente devotado ao cangaço.
Adriana - Mulher de Vitorino.
Sinhá - Mulher de José Amaro.
D. Amélia - Mulher do coronel Lula de Holanda. Representante feminino da aristocracia feudal do Nordeste. Moça prendada, educada na cidade e, agora, presa à tristeza do sertão.
Enredo e estrutura da obra
Narrada em terceira pessoa, a obra é dividida em três partes que se ligam e se completam: O mestre José AmaroO engenho do Seu Lula, e O Capitão Vitorino. Convém destacar o caráter lúdico da composição, já que o autor entrelaça as ações das personagens em todas as partes, revelando a decadência do Engenho Santa Fé e das famílias que lá moravam.
Três novelas interligadas, com a história pungente de três personagens trágicas. É um romance recheado de tristeza. A presença patética do romance é a de Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, figura poderosa, inesquecível. É o romance cheio de loucura, que é uma das obsessões de José Lins, como a morte e o sexo. Em Fogo Morto análise e sexo se fundem. A obsessão angustiante do sexo é vencida pela análise da alma humana, naquele áspero mundo de fatalismo e misticismo.  O autor nos envolve com seu estilo lírico, as três personagens entrecruzam-se no espaço e no tempo narrativo. É uma narrativa multifacetada, com pluralidade de visões. É o imenso painel da sociedade rural do Nordeste, na transição da economia mercantil para a economia pré-capitalista. É uma espécie de síntese de toda a obra ficcional de José Lins do Rego. Primeira parte
O mestre José Amaro - Artesão que lida com couro, mora nas terras do engenho Santa Fé, pertencente ao coronel Lula de Holanda Chacon. O fantasma da decadência econômica – mais sugerida do que descrita – ronda o seu trabalho. José Amaro é um homem amargurado e sofrido que rebela-se contra a prepotência dos senhores de engenho através de uma altivez que beira a arrogância. O desprezo que sente pelos “coronéis” leva-o a engajar-se como informante do bando de cangaceiros chefiado por Antonio Silvino. Assim, ele manifesta sua rejeição aos poderosos e à ordem constituída.
Contudo, José Amaro tem o coração moldado pelos valores patriarcais dominantes. Por isso, maltrata sua esposa, Sinhá, e sobretudo sua filha, Marta que, com trinta anos, continua solteira e começa a ter agudas convulsões nervosas. Em um dos momentos mais dramáticos de todo o romance, José Amaro espanca longa e violentamente a filha em meio a uma dessas convulsões. A partir de então, Marta vive em estado de torpor, falando coisas sem nexo. Cada vez mais infeliz, o mestre seleiro caminha à noite pelas estradas próximas, ruminando as suas frustrações. O povo da região passa ver nele a encarnação de um lobisomem e o evita cada vez mais.
O destino de José Amaro se decide apenas na terceira parte da obra. Sinhá e Marta o abandonam e o artesão percebe sua incapacidade de opor-se às classes dirigentes. Dirige então o seu temperamento violento contra si próprio e suicida-se com o mesmo instrumento que representava sua sobrevivência: a faca de cortar sola.
Segunda parte
O Engenho do Seu Lula - Senhor do engenho Santa Fé, que obtivera através do casamento com Amélia, filha do poderoso capitão Tomás Cabral de Melo, “seu” Lula é prepotente e mesquinho,  trata tão mal os escravos que estes, após a Abolição, abandonam em massa a propriedade rural Desinteressado das questões práticas, administra pessimamente o engenho, levando-o a rápido declínio. Face a incapacidade de seu proprietário, o Santa Fé, em dado momento, não produz mais açúcar. A sobrevivência familiar fica restrita à criação de galinhas e à produção de ovos, das quais se encarrega Amélia, a esposa do decrépito coronel.
No entanto, Lula de Holanda Chacon mantém a pose de grande senhor, pose traduzida no cabriolé (pequena carruagem de luxo) com que percorre as estradas, sem cumprimentar ninguém. Autoritário, impede que sua filha Nenén namore um rapaz de origem humilde. Esta, condenada a permanecer solteira, fecha-se sobre si própria e torna-se alvo de riso e deboche da vizinhança. Enquanto isso, alienado dos problemas econômicos que causam a derrocada de seu mundo, Lula entrega-se à práticas místicas, sob influência de Floripes, um negro que era seu afilhado. Como em outros momentos de Fogo morto, o desequilíbrio psíquico decorre do processo de decadência social. Cabe a mulher do senhor de engenho, a compreensão lúcida e triste do fim de tudo: Os galos começaram a cantar, o chocalho de um boi no curral batia como toque de sino. O negro saiu e D. Amélia ficou a olhar a noite...Agora ouvia uma cantoria fanhosa, um gemer que abafava o canto dos galos. Da casa de Macário saíam vozes, chorando uma morta. D. Amélia fechou a porta da cozinha. Dentro de sua casa uma coisa pior que a morte. Não havia vozes que amansassem as dores que andavam no coração de seu povo. Viu a réstia que vinha do quarto dos santos, da luz mortiça da lâmpada de azeite. Caiu nos pés de Deus, com o corpo mais doído que o de Lula, com a alma mais pesada que a de Nenén.
Acabara-se o Santa Fé.
Terceira parte
O Capitão Vitorino - Personagem cujas origens o vinculam às famílias tradicionais da região açucareira, as quais já pertenceu socialmente, embora hoje seja apenas um pequeno proprietário que vive de maneira modesta. Nas duas primeira partes da obra, o capitão Vitorino é uma figura ridícula, quase grotesca, a ponto de ser denominado de Papa-Rabo pelos moleques. Na terceira parte, contudo, ele se eleva, assumindo a condição de um homem idealista e quixotesco. De Dom Quixote, Vitorino possui o sentido nobre dos gestos e uma percepção limitada da realidade, que o leva investir contra tudo aquilo que lhe parece injustiça, sem medir a força do inimigo, nem pesar as conseqüências de suas ações.. Contesta o poder absoluto dos senhores de engenho, da polícia militar e até dos cangaceiros, defendendo ideais éticos que parecem inviáveis na vida cotidiana da região. Acredita que, pelo poder do voto, possa instaurar uma ordem institucional num meio em que a única lei é o arbítrio dos latifundiários. Trata-se de um liberal humanista, mais preocupado com o uso e abuso da força do que propriamente com os desníveis sociais existentes na sociedade da cana-de-açúcar. Estas faces contraditórias da visão de mundo de Vitorino não lhe retiram a grandeza humana e literária. Ao contrário, fazem parte de sua personalidade multifacetada.
Apesar de sua estrutura sólida, Fogo Morto é um documento sociológico, que retrata o Nordeste e a oligarquia composta pelos senhores de engenho, ameaçada com a chegada do capital proveniente da industrialização. São engenhos de "fogo morto", onde decai o patriarcalismo com suas tragédias humanas.
Convém destacar o caráter lúdico da composição que o autor entrelaça as ações das personagens em as partes, revelando a decadência do Engenho Santa Fé e das famílias que lá moravam.

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