Vidas Secas –
Graciliano Ramos
Vidas Secas foi o romance responsável por popularizar Graciliano
Ramos ao retratar a vida de uma família de retirantes: Fabiano,
Sinhá Vitória, “o menino mais velho”, “o menino mais novo” e a cachorra Baleia.
Publicado em 1938, ultrapassou as tendências regionalistas da geração de 1930 e
foi o único romance do autor escrito em terceira pessoa.
Em Vidas secas, a grande
obra regionalista modernista, o drama social do Nordeste é representado nas
figuras humanas marcadas pela miséria e pela seca da região.
RESUMO DO LIVRO
O
romance narra a história da retirada de uma família de nordestinos por causa da
seca. Através da narrativa, o leitor entra em contato com o sertão e o
sofrimento da família deFabiano.
Observa-se que mal há comunicação entre eles; as crianças não têm nomes, o que
demarca fortemente o processo de animalização das personagens para frisar a
vida dos fugitivos da seca.
Anseios,
sonhos, frustrações e muito sofrimento vêm à tona enquanto a família se retira.
É interessante a inversão de papéis que há entre Fabiano e a cachorra Baleia, enquanto o humano é
zoomorfizado, o animal é antropomorfizado, ou seja, Fabiano está mais próximo
de um animal, e Baleia é humanizada, tem nome e pensa.
Fabiano arruma um emprego de
vaqueiro numa propriedade que a família ocupa na época da chuva. É preso
injustamente pelo soldado amarelo, que, neste caso, representa a autoridade do
governo. Com a prisão, o personagem analisa a sua própria condição de homem-bicho
e se dá por vencido diante das desilusões em relação à vida dos filhos. O
vaqueiro é sempre ameaçado de demissão pelo patrão que o rouba nas contas.
Sinhá Vitória é impaciente com os filhos, sua ignorância é
menor que a do marido, pois pensa com clareza e sabe contar.
Baleia pensa e sente como um humano.
Na trama ela adoece, fato que leva o vaqueiro a pensar que está com hidrofobia
e matá-la. Com a agonia da morte, a cachorra faz uma autoanálise e não
compreende os motivos do dono, enfim, morre sonhando com um mundo cheio de
preás gordos.
A seca volta e anuncia um tempo de
miséria e fome. Sinhá Vitória vê o futuro com otimismo e transmite paz a
Fabiano que analisa sua vida. Com a seca, os retirantes deixam a casa da
fazenda e recomeçam a andança sem rumo retratada no
início da narrativa.
ESTRUTURA DA OBRA
Graciliano
Ramos escreveu cada capítulo de Vidas secas como se fossem episódios separados
e independentes dos outros. Assim, se tem fragmentos que se unem para formar um
todo a partir do próprio leitor. A retomada no início da narrativa no final da
obra é proposital, haja vista que não há fim determinado, deixando o caminho
livre para a imaginação do leitor.
O foco narrativo da obra está em
terceira pessoa, marcado pelo narrador onisciente que mergulhar no interior das
personagens a fim de trazer à tona pensamentos e sentimentos humanizados.
Usando, várias vezes, o discurso indireto livre, visto que a família pouco fala
e precisa de ajuda do narrador nesse quesito, Graciliano montou um quadro que
extrapola os limites do simples regional. É importante saber que embora raras,
as falas das personagens aparecem em discurso direto. Há também monólogos
internos, já que as personagens por nãos e expressarem bem evitam conversar
entre si.
O tempo na obra está voltado para o
psicológico, haja vista que não se estabelecem datas cronológicas. As ações das
personagens ocorrem entre uma seca e outra, entretanto, não é possível
determinar um tempo cronológico exato.
O espaço da obra é o sertão
nordestino, bem definido nas descrições e caracterizações.
PRINCIPAIS PERSONAGENS
Fabiano – é um homem
que apesar das adversidades é capaz de se analisar, mesmo possuindo
dificuldades de comunicação. Na maioria das vezes se comunica por meio de sons
e interjeições, portanto percebe-se que tal fato assemelha-se ao mundo animal
(zoomorfização). Fabiano tem complexo de inferioridade, por isso submete-se às
autoridades e aos poderosos. É conformado com vida que ele e sua família têm e
atribui isso ao destino. Na obra é a representação alegórica da seca.
Sinhá Vitória – mulher de
Fabiano, é determinada e forte. É impaciente com os cuidados da casa e dos
filhos. Tem uma percepção superior a do esposo e é capaz de pensar com clareza
e objetividade. Além de tudo, sabe contar. Tem a habilidade de manter acesa a
esperança de um futuro melhor para ela e sua família.
O menino mais novo – esse filho quase não se comunica, mas adora pensar que um dia quando
crescer será admirado e respeitado pelo irmão e pela cachorra. Sonha em ser
vaqueiro, tal qual ao pai.
O menino mais velho – sem amigos
e solitário, vê na cachorra a única amizade possível. É bastante curioso e
adora fazer perguntas, entretanto, é sempre repreendido. Sonha em ter um amigo.
Baleia – é uma
cachorra que possui sentimentos e pensamentos humanos, daí a antropomorfização.
No início da narrativa, ela salva a família da fome ao caçar preás. É morta por
Fabiano, pois apresentava sintomas de raiva. Baleia é a representatividade da
fidelidade ao dono e sua família; não entende as atitudes humanas e não
compreende os pontapés que ganha sem motivo.
Soldado amarelo – símbolo da autoridade do governo e da injustiça contra os mais fracos.
Patrão – símbolo da
opressão dos poderosos e da exploração do trabalho alheio.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 23. ed. São Paulo:
Martins, 1969.
AZEVEDO, Alexandre. SÁ, Sheila Pelegri de.
LITERATURA: segunda geração modernista. Ético Sistema de Ensino, 2012.
CONTEXTUALIZAÇÃO
HISTÓRICA
Os
abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos de 1930, a
crise econômica provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, a
crise cafeeira, a Revolução de 1930 e o acelerado declínio do Nordeste
condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais adulto, mais
amadurecido, mais moderno, que se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais
brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do naturalismo.
Principalmente no plano da narrativa documental, temos também o romance
nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.
Os romancistas de 30
caracterizavam-se por adotarem visão crítica das relações sociais, regionalismo
ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem
devorado pelos problemas que o meio lhe impõe.
Sobre Graciliano
Ramos
Graciliano
Ramos de Oliveira nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892.
Terminando o segundo-grau em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Após breve estada
no Rio de Janeiro como revisor dos jornais "Correio da Manhã" e
"A Tarde", passou a fazer jornalismo e política, elegendo-se prefeito
em 1927.
Em
1915 volta para o Alagoas e casa-se com Maria Augusta de Barros, que falece em
1920 e o deixa com quatro filhos.
Trabalhando
como prefeito de uma pequena cidade interiorana, foi convencido por Augusto
Schmidt a publicar seu primeiro livro, "Caetés" (1933), com o qual
ganhou o prêmio Brasil de Literatura. Entre 1930 e 1936 morou em Maceió e
seguiu publicando diversos livros enquanto trabalhava como editor, professor e
diretor da Instrução Pública do Estado. Foi preso político do governo Getúlio
Vagas enquanto se preparava para lançar "Angústia", que conseguiu
publicar com a ajuda de seu amigo José Lins do Rego em 1936. Em 1945 filia-se
ao Partido Comunista do Brasil e realiza durante os anos seguintes uma viagem à
URSS e países europeus junto de sua segunda esposa, o que lhe rende seu livro
"Viagem" (1954).
Foi preso em 1936 sob acusação de
comunista e nesta fase escreveu "Memórias do Cárcere", um sério
depoimento sobre a realidade brasileira. Depois do cárcere, morou no Rio de
Janeiro. Em 1945, integrou-se no Partido Comunista Brasileiro.
Graciliano estreou em 1933 com
"Caetés". Outro livro seu, "São Bernardo", é verdadeira
obra prima da literatura brasileira. Depois vieram "Angústia" (1936)
e "Vidas Secas" (1938), inspirados em Machado de Assis.
Artista
do segundo movimento modernista, Graciliano Ramos denunciou fortemente as
mazelas do povo brasileiro, principalmente a situação de miséria do sertão
nordestino. Adoece gravemente em 1952 e vem a falecer de câncer do pulmão em 20
de março de 1953 aos 60 anos.
Suas principais obras são: "Caetés" (1933), "São Bernardo" (1934), "Angústia" (1936), "Vidas Secas" (1938), "Infância" (1945), "Insônia" (1947), "Memórias do Cárcere" (1953) e "Viagem" (1954).
Suas principais obras são: "Caetés" (1933), "São Bernardo" (1934), "Angústia" (1936), "Vidas Secas" (1938), "Infância" (1945), "Insônia" (1947), "Memórias do Cárcere" (1953) e "Viagem" (1954).
Podemos
justificar isto com passagens do texto:
- "Os infelizes tinham caminhado o dia
inteiro, estavam cansados e famintos."
- "A caatinga estendia-se de um vermelho
indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas"
- "Resolvera de supetão aproveitá-lo
(papagaio) como alimento..."
- "Miudinhos, perdidos no deserto queimado,
os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus
pavores."
ESTUDO DA LINGUAGEM
Tipo de discurso: indireto
livre.
Foco narrativo: terceira pessoa.
Foco narrativo: terceira pessoa.
Adjetivos, figuras de linguagem:
Metáfora: " - Você é um bicho, Fabiano."
Prosopopéia: compara Baleia com gente.
Metáfora: " - Você é um bicho, Fabiano."
Prosopopéia: compara Baleia com gente.
ANÁLISE
DAS IDEIAS
Comentário Crítico:
Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira. Não só da época em que o livro foi escrito, mas também nos dias de hoje, relatando situações como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete à ideia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência. O livro possui 13 capítulos que, por não terem uma linearidade temporal, podem ser lidos em qualquer ordem. Porém, o primeiro, "Mudança", e o último, "Fuga", devem ser lidos nessa sequência, pois apresentam uma ligação que fecha um ciclo. "Mudança" narra as agruras da família sertaneja na caminhada impiedosa pela aridez da caatinga, enquanto que em "Fuga" os retirantes partem da fazenda para uma nova busca por condições mais favoráveis de vida. Assim, pode-se dizer que a miséria em que as personagens vivem em Vidas Secas representa um ciclo. Quando menos se espera, a situação se agrada e a família é obrigada a se mudar novamente.
Mudança
Em meio à paisagem hostil do
sertão nordestino, quatro pessoas e uma cachorrinha se arrastam numa
peregrinação silenciosa. O menino mais velho, exausto da caminhada sem fim,
deita-se no chão, incapaz de prosseguir, o que irrita Fabiano, seu pai, que lhe
dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar. Compadecido da situação
do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais
modorrenta.
A cadela
Baleia acompanha o grupo de humanos agora sem a companhia do outro animal da
família, um papagaio, que fora sacrificado na véspera a fim de aplacar a fome
que se abatia sobre aquelas pessoas. Na verdade, era um papagaio estranho, que
pouco falava, talvez porque convivesse com gente que também falava pouco.
Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma
fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia
aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos.
Haveria comida. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano
consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para
a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira. Pensa na mulher e nos
filhos.
A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de
felicidade ao grupo. No céu, já escuro, uma nuvem - sempre um sinal de
esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A
vida melhorará para todos.
Fabiano
Em vão Fabiano procura por
uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na
situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda.
Estavam bem agora. Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um
bicho. Agora ele era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para
morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e
reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao
patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de
quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora
com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala
difícil das pessoas da cidade. Era um bicho.
A uma
pergunta de um dos filhos, Fabiano irrita-se. Para que perguntar as coisas?
Conversaria com Sinhá Vitória sobre isso. Essas coisas de pensamento não
levavam a nada. Seu Tomás da bolandeira, apesar de admirado por Fabiano pelas
suas palavras difíceis, não acabara como todo mundo? As palavras, as ideias,
seduziam e cansavam Fabiano.
Pensou na brutalidade do patrão, a tratá-lo como um traste. Pensou
em Sinhá Vitória e seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da
bolandeira. Eles não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se
confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho? Sentia, por vezes,
ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado.
Lembrando dos meninos, novamente, achou que, quando as coisas
melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora,
importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com
Sinhá Vitória sobre a educação dos pequenos.
Cadeia
Fabiano vai à feira comprar
mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade
do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga na
bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas.
Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando
esse está de partida. A ideia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro,
não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava em como enganar
Sinhá Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava.
O
soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de
Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, aguenta os insultos
até o possível, terminando por xingar a mãe do soldado amarelo. Destacamento à
sua volta. Cadeia. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente.
No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não
fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em
meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência.
Amolou-se com o bêbado e com a quenga que estavam em outra cela. Pensou na
família. Se não fosse Sinhá Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira
por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto?
Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua
incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar.
Sinhá
Vitória
Naquele dia, Sinhá Vitória
amanhecera brava. A noite mal dormida na cama de varas era o motivo de sua
zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de
dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da
bolandeira, como a de pessoas normais.
Havia um
ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a
uma briga por causa das "extravagâncias" de cada um, Sinhá Vitória
certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de
verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a.
Agora, ela irritava-se com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de
suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio à reza e à
atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação
maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe a lembrança
do bebedouro em que só havia lama. Medo da seca. Olhou de novo para seus pés e
inevitavelmente achou Fabiano mau. Pensou no papagaio e sentiu pena dele.
Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa,
Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinhá Vitória que não deveria
haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe. As coisas, agora,
pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam
sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, até mesmo Fabiano
queria uma cama nova.
O
menino mais novo
A imagem altiva do pai foi
que lhe fez surgir a ideia. Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava
com o auxílio de Sinhá Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos
garotos, impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também
impressionasse o irmão mais velho e a cachorra Baleia. No dia seguinte, acordou
disposto a imitar a façanha do pai. Para tanto, quis comunicar a intenção ao
mano, mas evitou, com medo de ser ridicularizado.
Quando as
cabras foram ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia, o
pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se altivo como Fabiano
quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal,
que o repeliu. Insistente, tentou se aprumar mas foi sacudido impiedosamente,
praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao
chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo, Baleia parecia
desaprovar toda aquela loucura. Fatalmente seria repreendido pelos pais.
Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza de que seria grande, usaria
roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão
admirados.
O
menino mais velho
Aquela palavra tinha chamado
a sua atenção: inferno. Perguntou à Sinhá Vitória, vaga na resposta. Perguntou
a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinhá Vitória, indagou se ela já tinha
visto o inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia
tentando alegrá-lo naquela hora difícil.
Decidiu
contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito,
quase igual ao do papagaio que morrera na viagem. Só Baleia era sua amiga
naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita? A culpa era de
Sinhá Terta, que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento
do garoto mais velho.
Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir
estrelas? Pensou novamente no inferno. Deveria ser, sim, um lugar ruim e
perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha
da faca. Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como refúgio.
Inverno
Todos estavam reunidos em
volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que
agitava a paisagem fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família
próxima à fogueira. Pai e mãe conversavam daquele jeito de sempre, estranho, e
os meninos, deitados, ficavam ouvindo as histórias inventadas por Fabiano, de
feitos que ele nunca tinha realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais
velho levantou-se para buscar mais lenha, foi repreendido severamente pelo pai,
aborrecido pela interrupção de sua narrativa.
A chuva
dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava
Fabiano. Sinhá Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao
morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão.
Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas. A chuva
tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a
chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o
soldado amarelo e demais autoridades que lhe atravessassem o caminho. A chegada
das águas interrompera aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada,
Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinhá
Vitória até pudesse ter a cama tão desejada.
Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela
fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a
alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança.
Algo não cheirava bem naquele enredo. Sempre pensativo, o menino mais velho
dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio.
Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora.
Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora.
Festa
A família foi à festa de
Natal na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum
às suas figuras, o que lhes dava um ar ridículo. A caminhada longa tornava-se
ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar
era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as
meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os
demais fizeram o mesmo. Voltaram ao seu natural. Baleia juntou-se ao grupo.
Chegando
à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa.
Sinhá Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos
maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens
nos altares, encantou-os mais ainda. O pai espremia-se no meio da multidão,
sentindo-se cercado de inimigos. Sentia-se mangado por aquelas pessoas que o
viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém na cidade era bom.
Lembrou-se da humilhação imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela
última vez na cidade.
A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de
jogos. Como Sinhá Vitória negou-lhe uma aposta no bozó, Fabiano afastou-se da
família e foi beber pinga. Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com
raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da
multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário. Queria bater em alguém,
poderia matar se fosse o caso. Vez ou outra, interrompia suas imprecações para
uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão,
fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente.
Sinhá Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia
deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria
naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo
urinou. Em seguida, para completar o momento de satisfação, pitou num cachimbo
de barro pensando numa cama igual à de seu Tomás da bolandeira.
Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de
pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para
alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acaba com a tensão.
Restava, agora, aos pequenos, o maravilhamento com tudo de novo que viam. O
menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A
dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens
poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas?
Distante de tudo, Fabiano roncava e sonhava com soldados amarelos.
Baleia
Pelos caídos, feridas na
boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que
ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinhá Vitória recolheu os
meninos, desconfiados, a fim de evitar-lhes a cena.
Baleia
era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram,
tentando sair ao terreiro para impedir a trágica atitude do pai. Sinhá Vitória
lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros
movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse
esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha.
Ao primeiro tiro, que pegou o traseiro da cachorra e
inutilizou-lhe uma perna, as crianças começaram a chorar desesperadamente.
Começou, lá fora, o jogo estratégico da caça e do caçador. Baleia
sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro
turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia,
tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A
vigilância às cabras, Fabiano, Sinhá Vitória e as crianças surgiam à Baleia em
meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha. Dores e arrepios. Sono. A
morte estava chegando para Baleia.
Contas
Fabiano retirava para si
parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de
contas com o patrão, sempre tinha a sensação de que havia sido enganado. Ao
longo do tempo, com a produção escassa, não conseguia dinheiro e endividava-se.
Naquele
dia, mais uma vez Fabiano pedira a Sinhá Vitória para que ela fizesse as
contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a
diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí
foi o patrão quem estrilou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro
emprego. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que
Sinhá Vitória era quem errara.
Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender
um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto
sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal.
Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar
porcos.
Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar
aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros,
assim como fora com seu pai e seu avô.
As notas em sua mão impressionavam-no. "Juros", palavra
difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Era sempre
assim: bastavam palavras difíceis para lograr os menos espertos. Contou e
recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Sinhá Vitória
é que entendia seus pensamentos.
Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga.
Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. O céu,
várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família.
Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.
O
Soldado Amarelo
Procurando uma égua fugida,
Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação
local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o
prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo que o
humilhara um ano atrás. O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de
segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado
claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o
perigo.
Fabiano
irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem
armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de
Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não
tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só
os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando
que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo
interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem,
para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para
inimigo maior.
Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou
firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda
ensinou o caminho ao amarelo.
O
Mundo Coberto de Penas
A invasão daquele bando de
aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e
cabras. Sinhá Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a
mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o
anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas,
mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma
nova fuga.
Era só
desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se
conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um
fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando? Quem
sabe a seca não chegasse...Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de
arribações só confirmava a triste situação. Elas cobriam o mundo de penas,
matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os.
Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em
sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou
se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e
no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar
maldito. Sinhá Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.
Fuga
O céu muito azul, as últimas
arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a
permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos
animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem
que se faria no dia seguinte.
Partiram
de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do Sul. O
grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não
queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade.
A
vermelhidão do céu e o azul que viria depois assustavam Fabiano. Baleia era uma
imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinhá Vitória também fraquejava.
Queria, precisava falar. Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que
foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação.
Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, aguenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, aguenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos?
Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam
quando crescessem? Sinhá Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia
chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para
descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau
agouro das aves que voavam no céu.
Sinhá Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se
viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a
cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado.
Sinhá Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haveria uma nova terra,
cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como
eles.